segunda-feira, 11 de julho de 2011

Bênça,vovozinha!

     Essa vovó descia e subia o morro depressa.Não me lembro bem de seu rosto nem de suas mãos.Mas imagino-as!
     Lembro-me muito bem da voz meio rouca e já cansada de tanto emitir sons.Diziam que tinha sido escrava.Sabia fazer um café gostoso que nunca bebi.Ela cheirava a café.Tinha a cor do café fresquinho e gostoso.
     Essa vovó usava um pano na cabeça e tinha sempre uma sacola na mão.Pra mim deveria ter uns duzentos anos!Não que me parecesse por demais velhinha,pois não me lembro de rugas no seu rosto,mas tinha sido escrava e cheirava a café moído na hora,como nas fazendas dos grandes senhores...
     Não sabia o que era dor de cabeça e nunca andara descalça.Mas como,se tinha sido escrava??!!!!  Mas eu,descalça na calçada, a descobri e pedia:
  -"Bênça,vovozinha!" E essa vovó respondia: -"Deus  te abençôe,meu brinquinho!"
Gostava quando me chamava de "seu brinquinho" e me aceitava como neta.Mas eu tinha uma preferência,gostava mais quando me chamava de "meu orinho".
    Tento me lembrar agora de mais detalhes sobre a pessoa física e só consigo rever uma saia comprida,braço na cintura e uma sacola na mão.E o cheiro do café. E "Deus te abençoe,meu orinho!"
     Não sei porque depois de tantos anos e só agora,adulta na idade,lembrei-me dela.
Talvez seja porque sinto falta de alguém que me abençoe,de alguém que nunca tenha sentido dor de cabeça e que me chame de seu brinquinho.
Talvez seja porque eu tenha agora nos lábios a vontade de ter o gosto de um café quentinho,e o desejo imenso de ser adotada,de ser amada espontaneamente,sem o compromisso de laços sanguíneos,de certidão de idade e de pia de batismo.
Só sei que eu gostaria de saber onde ela está agora.Subiu,subiu o morro e se esqueceu de descer.
     Vai ver que tem sentido muita dor de cabeça e sente vergonha de dizer.

                                                                 Cida - Rio,04.03.1973
                                                                
                                ( Dedicado ao meu grande amigo Assis Furriel, em 11.07.2011)

3 comentários:

  1. Cida,

    muito me emociona o seu texto escrito há tanto tempo e o meu escrito somente agora. A história que contei se passa mais ou menos próxima a data do seu texto (73). Aliás, deve ser entre o fim dos anos 60 e início dos 70. Vovó Amélia era figura habitué lá de casa, anterior ao meu próprio nascimento. Uma curiosidade do seu texto é a data, foi o aniversário de 12 anos de minha irmã Rosana e três dias antes do meu décimo aniversário. Legal, não?

    Muito bom saber que temos histórias em comum, relacionadas a experiências tão delicadas e tão relevantes ao nosso espírito. Outra observação é o fato de sermos tão queridos mutuamente e ainda assim, desconhecermos muita coisa um do outro e, ainda assim, coincidimos em muitas histórias e experiências, como essas de nossas "vovós" queridas.

    Que bom que pude colaborar para que publicasse este seu lindo texto. Parabéns!

    Bjs do seu eterno evangelizando!

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  2. Cida,

    Gostei!
    "Subiu o morro e se esqueceu de descer"...

    Também acabei lembrando das histórias da minha avó. Deixei no blog do Assis um comentário.
    Bjs!

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  3. "seu brinquinho", "cheirava a cafe moido na hora" (senti o cheiro do cafe torrando) e "se esqueceu de descer", me tocaram fundo o coraçao...
    Parabens pela sensibilidade!
    Bjs.

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